A SAGA DOS ESCOTEIROS DE ANTONINA — 4ª PARTE — CAPÍTULOS 10 A 12

10 – CANÁRIO, O GARFO NUMERO UM!

A Vila de Tuneiras, atual Tunas do Paraná, na década de 1950, dez anos depois da passagem dos escoteiros por lá.

(Estamos no mês de dezembro de 1941. Enquanto o mundo está em Guerra e o Brasil segue sob a Ditadura do Estado Novo, cinco escoteiros de Antonina, PR, entre 15 e 18 anos, estão desde 16 de dezembro de 1941 numa marcha a pé rumo ao Rio de Janeiro para entregar uma mensagem para Getúlio Vargas. No episódio de hoje, 22 de dezembro de 1941, Beto, Milton, Lydio, Antônio (Canário) e Manoel (Manduca) estão cruzando o perigoso Vale do Ribeira, cheio de mato e gente mal encarada.)

Ainda assustados com a notícia do horrendo crime de que ouviram falar na Vila de São Pedro, os rapazes acordaram cedo e não quiseram saber de conversa. Um café sem mistura e logo as 7:00 já estavam na estrada.

Aquela região era repleta de pequenas estradinhas. Os rapazes caminhavam com cuidado para não se perderem. Estavam procurando a vila de Bonsucesso. Depois de muito penar, acabaram acertando o caminho. O caminho, aliás, era estreito, e eles tinham que passar em fila indiana. Chefe Beto na frente Lydio encerrando a fila. A medida em que caminhavam, a distância de um para o outro ficava longa. Em alguns casos, chegaram a ficar um quilômetro uns dos outros. O cansaço ia dominando os rapazes, e eles pararam para descansar.

Neste pouso, combinaram que iam caminhar todos juntos. Outra coisa a decidir era o que comer. Enganaram os estômagos com água com açúcar e continuaram a caminhar tentando ultrapassar de vez a Serra da Bocaina. Havia muitos passarinhos na trilha. Lydio, poético, chegou a definir sua cantoria como uma sinfonia desafinada. Também era muito atento as belas orquídeas e caraguatás, dispostas em arvores altas e nas altas pedras do caminho.

Neste caminho, encontraram também muitas mulheres a cavalo. Lydio as descreveu como caboclas de olhos rasgados, tipo bugras. Exímias amazonas, cruzavam o caminho deles e saíam em desabalada carreira. Na certa, para avisar seus maridos que a Polícia Volante, ou seja, eles, estavam por perto.

Com efeito, ao chegar nas casinhas no meio do mato os rapazes só encontravam cachorros magros e crianças maltrapilhas. Estas crianças só sabiam dizer que seus pais não estavam ali. Os cinco rapazes não tinham como perceber, mas esta era uma estratégia de invisibilidade. Assim as populações tradicionais e originárias haviam resistido à ocupação do estado brasileiro e suas levas de ocupação “civilizada” nestes cinco séculos. Parecia uma coisa banal, mas era uma estratégia muito bem elaborada. Era um lugar de estar e não estar, numa guerrilha perpétua.

A “guerra brasílica” ainda era travada, sem que os escoteiros o soubessem, ali naqueles planaltos aparentemente desertos que eles estavam atravessando.

Havia, ainda a fome. No meio da estrada, um pé de ingá carregado supriu por ora as forças da rapaziada. O cansaço era grande. De vez em quando, Lydio confessa, a tristeza tomava conta dos rapazes. Uma semana quase já longe de casa. E que perrengues! De vez em quando, durante a caminhada, eles choravam bem baixinho longe dos outros para não serem notados.

Eles passaram pela localidade de Antinha às 14 horas. Às três e meia, já estavam avistando as pequenas casas da vila de Ouro Fino. Neste lugar, eles compraram um almoço de uma família polonesa que morava por ali. Enquanto a boia não ficava pronta, eles descansaram algumas horas num campo aberto, cortado por um corguinho de água fria e limpa que corria para leste, na direção do rio Pardo. A sombra em que descansaram era um pé de Santa Bárbara frondoso e ramado.

Quando a boia ficou pronta, eles avançaram. O almoço, depois de tanto tempo de aperto, era batatinha, repolho, ovos e farinha de milho. Como sobremesa, café com leite e broa de centeio. Lydio em seu diário faz uma singela homenagem seu colega Canário, eleito por unanimidade o garfo número um da turma. “Como comeu esse garoto”, comenta Lydio.

Depois de fazer uma pequena siesta na beira das árvores, os rapazes se aprontaram e seguiram viagem. Passaram, no caminho por uma plantação de linho, que desconheciam. Lydio anota que a plantação de linho parecia ouro.

Já tinham caminhado 4 quilômetros, quando Milton parou: “Xi! Esqueci meu bornal com toda a minha roupa naquele último lugar que paramos! Mas eu não volto lá de jeito nenhum!”. Tentamos convencê-lo a ir, pois estaríamos esperando, mas ele não concordou, e seguimos viagem.

Nesta altura, eles já haviam descido a Serra do cadeado, que foi contornada por uma parte mais acessível. Às 17 horas eles passaram pela vila de São Sebastião e, às 18 horas, chegaram em Tuneiras para pernoitar.

Na povoação, deram um paiol de milho para eles dormirem. As camas eram feitas de palhas e sabugos, no entanto, as ratazanas também infestavam o lugar. Lydio acabou por dormir fora do paiol, perto do fogo, mas longe das ratazanas.

11 – NA VILA DOS FUGITIVOS

Os escoteiros iam percorrendo as Serranias do Ribeira, repletas de matas de Araucária.

(Estamos no mês de dezembro de 1941. Enquanto o mundo está em Guerra e o Brasil segue sob a Ditadura do Estado Novo, cinco escoteiros de Antonina, PR, entre 15 e 18 anos, estão desde 16 de dezembro de 1941 numa marcha a pé rumo ao Rio de Janeiro para entregar uma mensagem para Getúlio Vargas. No episódio de hoje, 23 de dezembro de 1941, Beto, Milton, Lydio, Antônio (Canário) e Manoel (Manduca) estão chegando atravessando as Serranias do Ribeira. Lá. Eles chegaram numa cidade de gente mal-encarada. Será que eles vão ter problemas?)

Apesar de dormirem num paiol de milho cheio de ratazanas em Tuneiras, os rapazes acordaram animados naquela terça feira, 23 de dezembro. O final da primeira etapa da viagem, a cidade de Capela da Ribeira, poderia ser finalmente alcançada.

Eles seguiram então no rumo norte, pela “estrada provisória”, que ligava parcialmente Curitiba a Capela da Ribeira. Segundo o diário de Lydio, a estrada era muito malconservada, cheia de buracos, com pontes de madeira apodrecida. Ao longo da estrada, estavam passando continuamente tropas de mulas carregando balaios com milho e feijão. De vez em quando, uma carroça puxada por bois se fazia ouvir de longe, cortando o silencio da paisagem.

Logo adiante os meninos ficaram assombrados: estavam passando pela Garganta do Leandro, onde o rio Passa-Vinte formava uma grande cachoeira. Para Lydio, o barulho era equivalente a um trovão, e podia ser ouvido a muitos metros de distância.

Depois deste espetáculo bonito da natureza, começou outro, macabro: ao longo da estrada viam-se aqui e ali diversos esqueletos de caminhões de combate, enferrujando no clima quente e úmido do vale do Ribeira. Eram restos de antigos combates da Revolução Paulista de 1932.

A região que eles estavam cruzando era a frente do Ribeira da guerra civil deflagrada com o manifesto constitucionalista de São Paulo. Apesar de não ser uma das frentes mais importantes, ali também haviam ocorrido alguns combates. Na garganta do Leandro Lydio notou horrorizado um cemitério com cruzes de ferro dos soldados mortos durante os combates da revolução constitucionalista de São Paulo. Havia apenas oito anos, aquela região havia sido palco de combate entre as forças de São Paulo com os batalhões paranaenses.

Deixando para trás aquele cenário de guerra, os meninos passaram pela localidade de Poço Grande e no inicio da tarde já estão no lugarejo de Maria Gorda. Ali, Lydio anotou que existia a mina de cobre de Garapongá. A região do vale era também (ainda é) uma região riquíssima em bens minerais.

Neste período, havia uma grande concentração de pequenas minas de cobre e chumbo por toda a região. Em Apiaí, no lado paulista do vale, estava sendo construída uma Usina Experimental de Chumbo para beneficiar o minério e seus subprodutos, como a prata, o ouro e o zinco. Era um período de grande investimento público e privado, e pequenos povoados mineiros iam se formando aqui e ali, no meio da imensa mata.

Depois de tomar um café e um bolo de fubá, os meninos seguiram rumo norte, em direção ao vilarejo de Epitácio Pessoa.

No caminho, Lydio notou (e anotou em seu diário) que o rio que margeava a estrada, o Rio Grande, corria sobre um leito de areias muito brancas. Aqui e ali, havia algumas pequenas cacheiras, que Lydio anotou como sendo de gré vermelha. Gré ou grés é uma palavra francesa para arenito, o que não está de todo incorreto, visto que realmente ocorrem muitos corpos de rochas que poderiam ser assim denominadas nesta época.

Os jovens escoteiros estavam atravessando uma zona composta por rochas metamórficas muito antigas, que formam grandes cristas de serra, formada por duros quartzitos. Em outros locais, ocorriam mármores ora cinzentos, ora mais claros. Estas rochas eram a razão do potencial mineral do Vale do Ribeira. Só para dar um exemplo: na vila de Pedra Preta, onde hoje está a atual cidade de Tunas do Paraná, haveria de se iniciar alguns anos depois a extração de uma rocha ornamental muito usada hoje em dia, o “granito verde Tunas”.

Nas encostas das serras que eles iam pacientemente atravessando, eram frequentes as cachoeiras. Nestas cachoeiras e corredeiras ao longo da estrada, as caninhas do mato e os cordões de frade estavam sempre presentes, batidas pelo vento formado pela energia das quedas d´água. Um espetáculo para encher os olhos…

Nesta bucólica caminhada, os meninos chegaram na vila de Epitácio Pessoa no fim da tarde. A vila já tinha sido mais importante, mas estava em decadência econômica. As casas de estuque tinham buracos na parede e estavam com aparência de malconservadas. A igrejinha pequena, no alto de uma pequena colina, não dava aparência melhor à vila.

Os rapazes encontraram abrigo numa casa que servia de botequim, escola, residência e engenhoca de cachaça. Ao procurarem um rio para tomar banho, conversaram com alguns meninos da vila. Estes meninos disseram que os homens do lugar não estavam gostando da presença deles ali. Achavam que eles eram policiais procurando marginais e fugitivos homiziados naquele fim de mundo. A razão para as suspeitas eram as vestimentas do chefe Beto. Vestido com um culote e portando um capacete, chefe Beto também tinha um revólver na cintura. O porte militar do jovem chefe escoteiro chamou a atenção dos homens da cidade. Ali, naquela vila cheia de fugitivos da justiça, a sua simples presença provocava verdadeiramente esta suspeita.

Entretanto, o que realmente chamou atenção dos rapazes foi a professorinha da vila. Curiosa e bonitinha, ela atraiu a atenção dos rapazes, que ficaram conversando com a moça até a hora de dormir.

Na hora de dormir, chefe Beto ficou com a única cama, tendo os outros que se contentar com o chão. Aquela seria a ultima noite dos rapazes no sertão paranaense.

12 – UM NATAL NA CAPELA

A atual cidade de Ribeira (SP), antiga Capela da Ribeira, onde os escoteiros passaram o Natal de 1941.

(Estamos no mês de dezembro de 1941. Enquanto o mundo está em Guerra e o Brasil segue sob a Ditadura do Estado Novo, cinco escoteiros de Antonina, PR, entre 15 e 18 anos, estão desde 16 de dezembro de 1941 numa marcha a pé rumo ao Rio de Janeiro para entregar uma mensagem para Getúlio Vargas. No episódio de hoje, 24 de dezembro de 1941, Beto, Milton, Lydio, Antônio (Canário) e Manoel (Manduca) estão chegando a Capela do Ribeira, primeira cidade paulista do trajeto, onde eles passariam o Natal.)

Os escoteiros acordaram cedo naquela véspera de natal. Era o natal de 1941. Um Natal triste para muita gente em muitos lugares do planeta. A guerra seguia feroz na Europa.

Os soviéticos lutavam desesperadamente para manter Moscou e Leningrado, ameaçadas pelas tropas do Eixo. Na África, a luta era por Bengazi, na Líbia. No entanto, era na Ásia que a guerra estava mais violenta. Os americanos eram batidos nas Filipinas e os ingleses lutavam desesperadamente para manter Hong Kong frente ao avanço japonês.

Os meninos deixaram Epitácio Pessoa às 7 horas da manhã, agradecendo o pouso e a boa acolhida na vila. Agora desciam a estrada margeando o Rio Grande rumo à Barra Grande, onde encontrariam o majestoso rio Ribeira de Iguape. Dali, era só seguir para Adrianópolis e cruzar a ponte que já estariam em São Paulo, etapa seguinte da marcha.

No caminho Lydio notou maravilhado os inúmeros monjolos que iam encontrando no caminho. Anotou que estes moinhos rústicos eram muito úteis naquelas paragens distantes, onde não havia energia elétrica ainda. E notava o movimento do soque com uma certa nostalgia: “um sobe e desce sem parar, um barulho gostoso de se ouvir”.

Os meninos chegaram na localidade de Descampado ao final da manhã. Lá, tiveram um contratempo, pois ninguém ali quis vender comida para eles. Nem um pãozinho. Fosse porque não tinham, fosse porque não queriam vender nada aos forasteiros, os rapazes tiveram que se contentar em comer biju com chimarrão.

Lydio anotou que, apesar de desnutridos, continuaram a caminhada sem queixas ou lamentações. Segundo ele, haviam perdido 6 quilos cada um nesta primeira etapa da viagem. E a tendência era perder ainda mais.

A viagem pela “estrada provisória” seguiu até Barra Grande, onde encontraram o Ribeira. Em dezembro, o rio está barrento por causa da estação das chuvas. Somente algumas pedras eram visíveis ao longo do rio.

Cercado por morros bastante íngremes e com uma vegetação em diferentes tons de verde, os rapazes finalmente avistaram a rodovia federal, que chegava até Paranaí, a atual Adrianópolis. Antes de cruzar a ponte de concreto que ligava Adrianópolis a Capela da Ribeira – hoje o município paulista de Ribeira – os rapazes tomaram um chimarrão com os fiscais estaduais e federais no lado paranaense da ponte. E só depois cruzaram o rio.

A ponte sobre o Ribeira é uma luta eterna das duas comunidades. Esta que os meninos cruzaram foi a primeira ponte de concreto. O rio Ribeira, cheio de energia, não está nem aí para as pontes, e já derrubou todas elas. A atual ponte de concreto, a mais alta e reforçada de todas, foi construída em 1998-99, depois de ter sido destruída por uma forte cheia.

No lado paranaense, Lydio anotou, cheio de certa nostalgia, que havia do lado paranaense um grande outdoor onde estava escrito: “Paraná, terra dos pinheirais”.

Ao fim da tarde, na cidade de Ribeira, os rapazes procuraram as autoridades locais. Encontraram o secretário da prefeitura. Este avisou que ali não havia pensão suficiente para abrigá-los todos, e o prefeito estava viajando. No entanto, o secretário lhes ofereceu sua própria casa.

Depois de tomar banho no Ribeira e colocarem os uniformes “de gala”, os meninos foram para a praça principal, onde fizeram uma rápida reunião. Nesta reunião eles decidiram os próximos passos rumo a capital São Paulo, próxima etapa da viagem. E decidiram enviar um telegrama para Antonina, para avisar que estavam todos bem.

Qual não foi o espanto dos rapazes ao descobrir que haviam dois telegramas esperando por eles, datados de dois dias antes: um da prefeitura municipal, avisando da presença dos escoteiros por ali. O outro telegrama era do chefe Picanço, pedindo para que o Chefe Beto entrasse em contato com ele, pois todos estavam ansiosos por notícias. Era o primeiro contato que tiveram desde que haviam saído de Antonina, oito dias antes.

Os escoteiros mandaram orgulhosos um telegrama: “Capella da Ribeira 24 dezembro 1941: chegamos hoje bons vencemos primeira etapa continuamos amanhã noite – Sempre Alerta! Beto Milton Lydio Manoel Antonio”.

Os rapazes ainda cheios de energia alugaram umas bicicletas e foram passear, menos o chefe beto e Canário, que ficaram no banco da praça descansando. Lydio ainda teve tempo de mandar cartas para a família e amigos. Também foi á alfaiataria do Elpídio. Ele ainda mandou costurar suas calças descosturadas na entreperna, além de consertar um sem-número de botões da roupa dos demais.

Houve um apagão de energia elétrica, que durou até as nove da noite. A energia vinha de Apiaí, e demorou a ser reparada. Que inconveniente conveniente! Enquanto isso, os rapazes ficaram na praça escura e até arrumaram umas namoradas.

Depois, à meia noite, os rapazes assistiram a missa do Galo em Capela da Ribeira, ministrada pelo padre de Apiaí. Lydio aproveitou seu curriculum de coroinha e ajudou o padre, junto com uma menina que era Filha de Maria. Foi um comentário só na igreja um coroinha vestido de escoteiro!

Depois, os rapazes participaram da ceia na casa do secretário municipal, onde estavam alojados. Foram servidas gasosa, soda limonada e vinho, além de um grande bolo com motivos natalinos.

Já era quase duas da manhã quando todos, exaustos, foram dormir. Dingobells!

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